De acordo com os dados mais recentes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), estudantes que não possuem acesso à internet, celular e/ou computador tiveram a nota média 10% menor do que aqueles que informaram ter acesso à a esse tipo de tecnologia.
"O Enem dá visibilidade sobre como esse tipo de tecnologia é mal distribuído pela população brasileira", aponta Márcia Lopes Reis, doutora em sociologia e professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A desigualdade foi notada nas últimas cinco edições da prova, entre os anos de 2014 e 2018, em que, além da diferença em comparação com os outros participantes, o resultado desses candidatos foi menor que a média geral.
O levantamento realizado pelo Quero Bolsa, analisando os microdados das últimas edições do Enem, mostrou que a essa discrepância aumentou 12% entre os anos de 2015 e 2018.
Para Márcia, esse resultado é um dos reflexos de um século em que há a disseminação de uma quantidade de informações nunca vista antes, mas que fica fora do alcance daqueles que têm dificuldades em ter acesso a qualquer tipo de tecnologia, sobretudo as tecnologias digitais.
Diferença é ainda maior em Redação e Matemática
Além da discrepância na média geral, o candidato que possui utiliza diariamente internet e dispositivos tecnológicos, como celular e computador, ainda consegue se destacar em algumas áreas de conhecimento avaliadas no Enem.
Em 2018, por exemplo, a nota da Redação desse perfil de participante foi 19,73% maior do que dos outros estudantes, um padrão que vem crescendo desde da edição de 2015.
Lara Santos Rocha, professora de língua portuguesa da rede municipal de São Paulo e coordenadora do Cursinho Popular Florestan Fernandes, acredita que essa diferença aumenta porque a redação é o único momento dissertativo da prova, já que todas as outras questões são de múltipla escolha: “Podemos inferir que a dificuldade de escrita é então generalizada e que a redação é o espaço que torna isso evidente.”
Além da Redação, "Matemática e suas Tecnologias" também é outra área de conhecimento em que esses candidatos são beneficiados, com resultado 11,03% melhor do que os demais.
Para a Márcia, que também pesquisa sobre novas tecnologias e o uso da educação, isso acontece porque a redação e a matemática são duas formas de linguagem, que são desenvolvidas de acordo com o repertório cultural que cada um possui.
"A matemática é um modo de interpretação da realidade. Já a redação é o momento literário, em que escrevemos sobre essa realidade. Tanto um como o outro exigem um repertório que, a ausência ou o processo de exclusão de acesso a essas informações, deixa a discrepância ainda maior entre aqueles que possuem acesso a algumas tecnologias e formas de difusão do conhecimento, seja ele científico ou não", explica.
Com o contato próximo ao dia a dia da Educação Básica pública brasileira, Lara ainda relembra que a falta de contato com a internet impossibilita que o aluno tenha acesso não apenas a videoaulas e materiais de estudo, mas também de temas discutidos diariamente.
“Isso tem a ver com o que esses aparelhos podem proporcionar. Músicas, memes e uma série de referências surgem nas redes sociais e estão cada dia mais presentes nas aulas e vestibulares. Existe toda uma linguagem específica relacionada às tecnologias, sejam as técnicas, sejam as gírias. Tudo isso é conhecimento”, destaca a professora.
Reflexo da desigualdade social
Para Ademar Celedônio, professor de matemática e diretor de ensino do SAS Plataforma de Educação, ter acesso à tecnologia é uma consequência da sua razão de ser socialmente.
“Apenas alguns brasileiros têm acesso ao Ensino Superior e a maioria dessas pessoas são de camadas sociais de classe média ou alta, que estudaram em escolas particulares e, por consequência, têm mais acesso à tecnologia pela condição financeira. Eles tiram notas melhores também por conta dessas possibilidades devido à sua condição social”, observa.
Segundo o Mapa do Ensino Superior mais recente, desenvolvido pelo Semesp, em 2017, cerca de 8,29 milhões de pessoas estavam matriculadas no Ensino Superior brasileiro. Isso equivale apenas a 3,96% da população do País.
De acordo com o Enem 2018, entre os candidatos que não possuíam qualquer tipo de contato com a tecnologia, a maioria (45,35%) possuía renda familiar mensal de até R$ 954,00.
Já para aqueles com acesso à internet e outros dispositivos digitais, a faixa salarial com maior número de candidatos (25,56%) era de R$ 954,01 até R$ 1.431,00.
Lara Santos Rocha reforça que o acesso ou não à tecnologia é simbólico do lugar em que os estudantes ocupam.
“Esse um dado que nos permite pensar sobre outros aspectos da vida desse estudante que afetam seu desempenho, como a baixa escolaridade da família, a falta de infraestrutura das escolas que frequenta, a necessidade de conciliar estudos e trabalho, entre outros”, acrescenta a professora e coordenadora pedagógica.
Para Márcia Lopes Reis, as escolas buscam corrigir uma parte dessas distorções, oferecendo aos estudantes oportunidades iguais de acesso ao conhecimento. Já que, sem essa possibilidade de equilibrar e equalizar essas diferenças, o futuro desses alunos estaria quase que selado.
“Esses alunos chegam na Educação Básica com uma diferença: suas famílias são diferentes, porque a riqueza é desigualmente distribuída entre as famílias. Por isso, torna-se papel das escolas fazerem esse processo equalizador, principalmente a escola pública”, explica.
Meritocracia x Enem: falácia simbolizada em exceções?
Uma matéria publicada no portal oficial do Ministério da Educação (MEC) em 2019 afirma que “a meritocracia será chave para o uso da nota do Enem como forma de ingresso no Fies”, porém, em meio aos diferentes perfis de candidatos da prova, é possível que a nota final da avaliação seja apenas fruto do mérito de cada estudante?
Para os três professores entrevistados, a resposta é não.
Ademar Celedônio atuou no Colégio Ari de Sá de Cavalcante, considerado um dos melhores colégios particulares brasileiros, por mais de dez anos e acredita que alunos com acesso a escolas privadas têm mais chances de tirar uma nota maior na prova. “É quase que notório que esses alunos, em sua média, vão tirar notas melhores do que os alunos que não tem acesso à tecnologia”, avalia.
Já a professora da Unesp questiona quais são os méritos e elogios que podem ser feitos para um estudante que teve acesso a todas as condições ideias de estudo em conseguir os melhores lugares nos vestibulares mais concorridos do País.
“Ou seja, para os bons, para aqueles que possuem um poder aquisitivo, as melhores escolas. Para aqueles que não possuem condições favoráveis, damos-lhes escolas muitas vezes desprovidas de acesso à tecnologia ou menos do que acesso à tecnologia, o acesso a uma biblioteca minimamente estruturada ou condições sanitárias ideias. Isso é só para a gente poder perceber o quanto há de falácia na meritocracia”, critica Márcia Lopes Reis.
Professora da rede pública de ensino, Lara ainda aponta que, apesar da Lei de Cotas e das políticas de permanência estudantil que buscam transformar essa realidade, ainda é errado resumir a existência da meritocracia em exceções.
“Quando reconhecemos que fatores como o acesso à tecnologia, à educação de qualidade, à alimentação, à infraestrutura são variáveis que implicam no desempenho dessas provas, discursos de meritocracia caem por terra. É muito cruel se guiar pela exceção e esperar que estudantes em situações de privação, com pouco acesso a bens materiais e culturais, cumpram trajetórias surreais para virarem o 1%”, chama a atenção.
Enem Digital: oportunidade ou expansão da desigualdade?
Em meados de 2019, ainda durante o processo de elaboração do Enem 2019, o MEC lançou o Enem Digital, uma versão on-line da prova anual, que será terá a sua edição piloto em 2020 e, a partir de 2026, será a única modalidade da prova. De acordo com os planos do Ministério da Educação, o Enem Impresso será extinto.
Em um cenário em que os dados das últimas edições apontam que alunos que não tem acesso à tecnologia possuem desempenho pior do que os demais, quão prejudicial será quando apenas a versão digital do Enem for a única opção?
Para a doutora em sociologia, Márcia Reis, se não houver o processo de democratização do acesso e do contato constante às novas tecnologias, o Enem Digital deixará ainda mais evidente as desigualdades educativas e sociais.
“Estamos falando de um país em que 16% das escolas não tem banheiro no prédio, 49% não tem rede de esgoto, que dirá sala de informática e acesso à internet! Usar o computador também é um aprendizado e nem todos tem a possibilidade de construir esse conhecimento”, exemplifica Lara Santos Rocha sobre a realidades das escolas públicas brasileiras.
Entretanto, para o professor Ademar Celedônio, enquanto o aluno tiver o direito de escolha, não haverá problemas.
“Para 2020, o aluno ainda poderá escolher a prova física. Obviamente, se ele escolher uma prova digital e não tiver acesso à educação e à tecnologia, ele vai estar, de certa forma desconfortável com o ambiente. Entretanto, como ainda é possível escolher, basta ele preferir a prova para qual estará mais adaptado e acostumado, que é a prova física”, explica.
Apesar da divergência de opiniões entre os profissionais da área da educação, uma verdade ainda prevalece: será preciso um período de adaptação para que o Enem não se transforme em uma barreira, ao invés de uma alavanca para o Ensino Superior.
“A aplicação digital das provas será então mais um desafio e que sabemos que vai afetar justamente quem tem menos possibilidade de ter contato com as tecnologias no dia a dia. É pensar que essas pessoas encararão dois desafios simultâneos: as questões da prova e as questões tecnológicas”, finaliza Lara.
Agora, considere todos esses questionamentos em um momento pós-pandemia que deixou todos os alunos do Ensino Básico brasileiro com aulas suspensas ou remotas. O que acontece com o Enem?
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Elaboração dos dados: Heitor Facini