Um dos maiores desafios com a crise do novo coronavírus é a educação. De acordo com o monitoramento global da Unesco, no mundo todo, cerca de 1,5 bilhão de estudantes tiveram suas aulas suspensas por causa da Covid-19. Nesse momento, mais de um bilhão ainda seguem sem aulas presenciais.
No Brasil, segundo o Censo Escolar 2019, são mais de 47 milhões de alunos do ensino básico público e privado com aulas presenciais paralisadas. A última vez que o país se deparou com uma situação parecida foi durante a pandemia de Gripe Espanhola, em 1918, quando todos os alunos foram aprovados sem exames finais.
A suspensão das aulas presenciais e a adoção de atividades remotas para continuidade dos estudos expõe as desigualdades educacionais já existentes entre estudantes ricos e pobres e escolas públicas e privadas do país.
Enquanto a rede de ensino particular dispõe de melhores instrumentos e recursos para continuar as aulas e o contato com os alunos pelo meio virtual sem perder a qualidade do ensino, a rede pública enfrenta, principalmente, a falta de acesso à internet por parte dos estudantes e até a necessidade de manter a alimentação desses alunos longe da escola.
Para os alunos do 3º ano do ensino médio de escolas públicas (o foco desta reportagem), a situação é ainda pior. Além das dificuldades de continuar os estudos do último ano da escola, existe a preocupação com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) - a principal forma de acesso ao Ensino Superior no país.
Após a pressão de milhares de estudantes, o MEC decidiu adiar o exame e, agora, realiza uma pesquisa com os inscritos para determinar a nova data de aplicação do Enem Regular e Enem Digital (que está em sua primeira edição). Os candidatos devem votar para o exame ser realizado em dezembro, janeiro ou maio de 2021.
Quais foram as medidas do MEC diante da crise?
O Ministério da Educação (MEC) tem como função coordenar a política nacional de educação, do ensino infantil ao superior. Outro órgão federal importante é o Conselho Nacional de Educação (CNE), que deve formular e avaliar a política nacional de educação.
Diante da crise do novo coronavírus, por meio do parecer do CNE, o MEC dispensou o cumprimento dos 200 dias letivos anuais para as escolas básicas e instituições de ensino superior, desde que sejam realizadas a carga horária mínima anual de 800 horas aula/ano.
O ministério também liberou a substituição das aulas presenciais pela modalidade a distância, permitindo que as aulas não presenciais também sejam contabilizadas nos dias letivos.
O professor Luciano Sathler, membro do Comitê de Educação Básica da ABED (Associação Brasileira de Educação a Distância), acredita que o MEC desempenhou o papel possível nesse contexto.
“O CNE preparou a resolução, que explica melhor como é essa flexibilização e reorganização do calendário, e o MEC homologou, permitindo os estados e municípios trabalharem a partir dessa orientação. O papel de como regulamentar isso agora é dos estados”, afirma.
Para a coordenadora do Comitê Distrito Federal da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Catarina de Almeida Santos, não houve coordenação do MEC e o parecer do CNE autorizou o educação a distância sem debate com os sistemas e a sociedade.
“O MEC deveria debater com os sistemas, buscar soluções e ajudar financeiramente. Nós temos quase 6 mil sistemas de ensino. Na hora de uma pandemia como essa, precisamos ter uma fonte nacional de debate e que concentre as ações das 27 secretarias estaduais e distrital de ensino”, opina Catarina.
Quais foram ações dos estados?
As medidas da maioria das secretarias estaduais de educação promoveram o ensino remoto por plataformas, aplicativos, rádio e TV aberta. Aos alunos sem acesso à internet, as secretarias distribuíram o material impresso na escola ou entregaram nas casas dos estudantes.
No que diz respeito a garantia de alimentação, antes suprida pela merenda escolar, a maior parte das secretarias segue distribuindo cestas básicas ou fornecendo um vale alimentação mensal aos estudantes mais pobres e de famílias cadastradas no Bolsa Família e/ou Cadastro Único (CadÚnico).
Para o professor Luciano, o trabalho desempenhado pelas secretarias de educação é heroico: “Todo mundo foi pego de surpresa e todos os estados têm uma limitação orçamentária muito grande. De forma emergencial, a maioria fez o que é possível”.
Mas, de toda forma, Luciano assegura que haverá prejuízo na aprendizagem dos alunos. Isso porque muitos não foram alcançados pelo ensino remoto, nem mesmo com o material impresso, e a educação a distância - em situações normais - não é recomendada para adolescentes nos moldes adotados no momento.
Além disso, o EAD implantado está longe de ser o ideal. “Esse EAD não foi planejado, não teve capacitação de professores, não teve suporte técnico previamente preparado, o material didático não era o mais preparado para o EAD. Um programa de EAD tem alguns componentes de qualidade que não foram possíveis serem preparados nessa virada emergencial”, esclarece Luciano.
A professora Catarina é categórica em afirmar que foi um erro a manutenção do ensino a distância. Para ela, a implementação do calendário letivo deveria ser feito quando pudessem haver contatos presenciais.
“A preocupação é perder o ano letivo. Mas, eu pergunto: ‘Quem vai perder o ano letivo?’ Se as secretarias implementam o calendário letivo, elas vão fazer com que alguns concluam o ano, aqueles que sempre concluem sem problemas, e vão excluir os outros. Quem está perdendo o ano letivo e ficando para trás são aqueles que sempre ficam, que não tem acesso à internet e a várias outras coisas”, critica.
Alunos sentem queda na aprendizagem com EAD
As dificuldades do ensino a distância são relatadas pelos estudantes. Mesmo com o suporte da escola, Pollyanna Melo de Araújo, aluna do 3º ano de uma escola estadual de Manaus, no Amazonas, não tem gostado do ensino remoto: “As aulas são sempre enviadas em PDF e, mesmo podendo entrar em contato com os professores, não é a mesma coisa que a aula presencial”.
A aluna Lorenna Mackenet Santos Oliveira, do 3º ano de uma escola estadual de Inhuma, no Piauí, agradece muito o apoio da escola e tem gostado do conforto do EAD, mas também está com dificuldades de absorver a quantidade de conteúdo passada pelos professores. “Os professores passam PDF e videoaula achando que está sendo suficiente, mas não está. Precisamos do auxílio e explicação deles”, lamenta.
O desafio de atingir os estudantes sem internet
Garantir o ensino aos estudantes sem acesso à internet tem sido o maior desafio das secretarias estaduais. Em sua turma de sala de aula, no Piauí, Lorenna conhece três ou quatro colegas que não têm acesso às aulas remotas, dependendo apenas nos conteúdos das apostilas impressas que pegam na escola.
“Tenho um colega de classe que está com dificuldade para acessar as aulas e também fazer as atividades realizadas pelo Word, pois ele não tem acesso a esses recursos. Assim, a aprendizagem se torna inacessível”, também relata a estudante Julia Moura, do 3º ano do ensino estadual da cidade de Jacareí, em São Paulo.
Em Roraima, de acordo com os dados do mês de abril disponibilizados pela Secretaria de Educação e Desportos do estado, na capital Boa Vista, 70,14% dos 41.850 estudantes da rede estadual foram alcançados pelas atividades on-line. Já no interior do estado, segundo uma amostragem de 9.662 alunos, somente 44,69% tiveram acesso ao material on-line. Naquele mês, a taxa de estudantes não alcançados pelo material on-line nem impresso foi de 13,93% na capital e de 9,17% no interior.
No estado do Tocantins, segundo a Secretaria da Educação, Juventude e Esportes, dentre os 16.090 alunos do 3º ano do ensino médio da rede estadual, 55% afirmaram não ter acesso à internet.
Para atingir os estudantes que residem na área rural, indígena ou quilombola, a secretaria do Tocantins está entregando semanalmente o material impresso em casa por meio do transporte escolar. Para os alunos da zona urbana que tem computador mas sem acesso à rede, além das apostilas em papel, a secretaria também disponibiliza o material digital por pen-drive.
No Rio Grande do Sul, a solução viabilizada pela Secretaria da Educação foi disponibilizar internet patrocinada no celular para alunos e professores que não possuem o acesso. Aos alunos que não têm smartphone, além da entrega do material impresso nas casas, a secretaria permite o uso dos computadores da escola, que estão funcionando em regime de plantão com agendamento, respeitando os protocolos de saúde.
Outra secretaria que adquiriu pacote de dados para alunos sem internet móvel foi a do Espírito Santo. No Distrito Federal, a contratação de pacotes de internet para os estudantes está na fase final. Já o governo de São Paulo permite o acesso gratuito à plataforma de ensino remoto Centro de Mídias SP, sem gastar os dados móveis do estudante.
Para a professora Catarina, mesmo com as alternativas, a oferta de educação enquanto direito de todos não está acontecendo. “Se só alguns conseguem acompanhar, isso é privilégio. Para garantir o direito é preciso fazer com que todos consigam”, pontua.
A falta de acesso ao ensino se soma às altas taxas de evasão escolar do país e deixa a situação mais preocupante. Segundo um estudo do Instituto Sonho Grande deste mês (citado no Anuário Brasileiro da Educação Básica 2020 do Todos pela Educação), os estudantes que deixam a escola durante crises como essa têm probabilidade 30% menor de continuarem os estudos. O surto de Ebola na Guiné entre 2013 e 2016, por exemplo, elevou em 15% a evasão escolar.
Catarina ainda acredita que as medidas do governo estão naturalizando processos de exclusão: “O parecer no CNE recomenda, inclusive, que para os alunos de populações indígena, quilombola, do campo e dos povos tradicionais se faça a reposição depois que a pandemia acabar. Se esses alunos podem fazer depois, porque os demais não podem?”.
Medidas voltadas para o Enem
Parte das secretarias estaduais transmitem aulas de revisão para o Enem pela TV, Youtube e site próprio de segunda a sexta ou aos finais de semana, como a de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Sergipe, Goiás e Piauí
Para ajudar os pré-vestibulandos, a secretaria de Roraima firmou uma com o Grupo Estácio e disponibilizou gratuitamente a plataforma de estudos “Resolve Sim” com exercícios, videoaulas, tutoriais e simulados aos alunos do ensino médio. No Acre, as escolas distribuíram os primeiros simulados preparatórios para o Enem. Até o final do ano serão, ao todo, quatro simulados.
A pandemia pode aumentar a desigualdade no Enem
Segundo os dados das últimas cinco edições do Enem, levantados pelo Quero Bolsa, os estudantes que não possuem acesso à internet, celular e/ou computador tiveram a nota média 10% menor. No próximo Enem, os especialistas acreditam que a desigualdade irá aumentar.
Leia: Estudantes sem acesso à internet têm desempenho pior no Enem
A estudante Julia relata que sua escola tem falado pouco sobre o Enem: “Eu estou estudando por conta própria para o Enem e outros vestibulares, vendo vídeos no YouTube e acessando portais de estudos”.
Já a aluna Lorenna conta que a escola tem apoiado nos estudos para o Enem, mas não são todos os alunos que têm tempo para se dedicar aos estudos para o exame. “A escola está tomando muito nosso tempo e, dentro de casa, temos os afazeres domésticos. As aulas focadas no Enem da secretaria de educação são transmitidas aos finais de semana, mas duram a manhã toda e parte dos alunos não têm essa disponibilidade para acompanhar”, lamenta.
Os especialistas Luciano e Catarina são unânimes em dizer que o Enem já é um processo desigual. Para eles, a pandemia só escancara as desigualdades já existentes no país e deve aumentá-las nos próximos anos. “A pandemia poderia ajudar a tornar a revisão do Enem uma pauta prioritária do governo”, reflete Luciano.
“As desigualdades se somam. Quem já não tinha acesso ao computador e internet, agora fica sem acesso à escola. Por isso, é importante que o Enem aconteça depois que todos retornem à escola e tenham um tempo de estudo, de reorganização e de recuperar minimamente o que foi perdido, para que o exame seja o menos desigual possível”, completa Catarina.
Como diminuir a defasagem pós-pandemia?
Para o retorno às aulas, sem data prevista na maioria dos estados, são necessárias avaliações diagnósticas e aplicação de reforço para recuperar os níveis de aprendizagens dos alunos.
Sem medidas efetivas no pós-pandemia, a evasão escolar, a desigualdade educacional e a defasagem no ensino, que já apresentam números preocupantes no país, podem piorar. As escolas ainda precisam considerar as consequências emocionais, físicas e cognitivas do longo período de isolamento em um cenário econômico, social e sanitário ainda desconhecido.
Com base nos países que melhor se ajustaram à pandemia, o professor Luciano destaca a necessidade do governo investir em quatro pontos: acesso universal à internet, acesso e design universal para as pessoas com deficiência, capacitação da cultura digital e autonomia do estudante.
Para a professora Catarina, para que o retorno às escolas aconteça de forma segura e sem provocar mais exclusão, o governo deve investir na reorganização escolar: “Vamos precisar de mais professores, de melhorar as condições das salas de aula, de ver quem irá providenciar os equipamentos de proteção e equipes para fazer a higienização das escolas, entre outros”.
Para diminuir as desigualdade no Enem, o professor Luciano acredita que, além dos quatros pontos citados, seja necessário investir em programas de apoio socioemocional para os alunos e de incentivo ao ingresso em universidades públicas.
"Um dos problemas que os alunos da educação básica pública mais sofrem é não serem incentivados a acreditarem em si mesmos. Muitos não veem saída e acreditam no discurso estrutural de que estão fadados a pobreza, que não podem estudar em uma boa universidade, como a USP ou Unesp”, explica.
Além disso, a professora Catarina destaca a importância de garantir aos estudantes menos favorecidos tenham na escola o acesso aos equipamentos que os mais favorecidos têm em casa, além de espaços para estudo, laboratório diversos, materiais didáticos, quadra poliesportiva e professores disponíveis o ano todo.
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