Em 2018, a Lei de Cotas completa seis anos de existência e, atualmente, é considerada uma das maiores políticas de ações afirmativas para auxiliar grupos marginalizados no Brasil. As ações afirmativas são políticas de reparação, que visam diminuir e enfrentar grandes dificuldades no País, nesse caso, as raciais.
“Essas ações afirmativas são uma demanda do movimento negro que trabalha com o tema das relações étnico-raciais no Brasil e, entendendo por meio dos seus estudos e das estatísticas do próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), visa diminuir a grande lacuna existente entre brancos e negros no Brasil”, explica Gianne Reis, doutora em ciências políticas e pesquisadora sobre o sistema de cotas raciais no Brasil.
Com os negros, essa lacuna começa a acontecer com a abolição da escravatura no País, quando os recém-libertos não tiveram nenhum apoio do governo para conseguir se adequar à sociedade, assim, gerando um enorme abismo social que gera consequências até hoje. No caso dos índios, isso é ainda mais antigo, visto que com a ocupação do Brasil, milhares de indígenas também foram escravizados e não houve nenhum tipo de política pública para auxiliá-los.
“Essas etnias passaram por um processo de desigualdade tão grande durante todo o século 20, entrando pelo século 21, que para chegar à universidade eles teriam que superar imensas barreiras, como já superam para se manterem no Ensino Fundamental e Médio. Aqueles que continuam já são heróis e heroínas, não tenho a menor dúvida disso”, comenta Dra. Gianne.
Assim, é entre as décadas de 1970 e 1980 que surgiram os primeiros movimentos negros que pediam a criação de ações afirmativas que ajudassem a diminuir essa desigualdade. Porém, foi apenas em 2001 que a pauta foi “levada a sério”, após a terceira edição da Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, realizada em Durban, na África do Sul, quando o governo brasileiro começou a dar relevância ao assunto e elaborar os programas de cotas raciais.
A primeira instituição a oferecer essa opção foi a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 2003. Já a primeira universidade federal foi a Universidade de Brasília (UnB), que ainda é conhecida como referência no País sobre a implementação das cotas raciais.
Com a evolução dessa ação afirmativa e as diversas contestações sobre os programas de cotas, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as cotas raciais são constitucionais e totalmente necessárias para retificar o que a escravidão causou ao País. Com isso, no mesmo ano a então presidente da república, Dilma Rousseff, sancionou oficialmente a Lei n° 12.711 de 29 de agosto de 2012.
É importante lembrar que a Lei de Cotas, por ser uma política pública, tem como objetivo reparar a situação atual que esses grupos marginalizados vivem. Assim, a cada 10 anos, ou seja, em 2022, essa política será avaliada e revisada, a fim de descobrir se ela está causando a mudança para qual foi criada, dessa forma é possível redesenhá-la para atender a atual demanda.
“Toda política pública se propõe a isso, a mudar uma situação, a tentar diminuir essa lacuna e, a partir daí, fazer uma revisão que traga melhorias, ou até mesmo realizar a sua extinção, se for o caso. Eu diria que nada é para sempre e eu espero que não seja, pois assim chegaremos ao ponto de termos um país justo e que não precise de políticas que interfiram em um determinado processo”, evidencia Dra. Gianne Reis.
Quem tem direito às cotas raciais, segundo a Lei?
A partir dessa lei, todas as instituições federais que são vinculadas ao Ministério da Educação (MEC) são obrigadas a dispor de 50% das suas vagas para cotistas sociais, que são as cotas para aqueles que estudaram os três anos do Ensino Médio em escolas públicas, sendo que as cotas raciais são um subgrupo dentro desse percentual.
Ou seja, para ser cotista racial é imprescindível ser provindo de ensino público. Após isso, é preciso pertencer a uma dessas duas etnias: negros ou indígenas.
Para ser negro, é preciso se encaixar em uma das duas opções de cor, preto ou pardo. Essa nomeação segue as indicações do IBGE, que determina que o pardo é aquele que se declara “mulato, caboclo, cafuzo, mameluco ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça (sic)”.
É importante ressaltar que, apesar de raça ser autodeclaratória, com os inúmeros casos de fraudes, diversas comissões foram instauradas em instituições de ensino para avaliar denúncias e utilizam o fator fenótipo como guia, ou seja, analisando cor da pele, textura do cabelo e traços físicos.
Afinal, essa lei está cumprindo o que promete?
Segundo dados do Censo do Ensino Superior de 2016, o mais recente até então, o número de negros matriculados em faculdades e universidades chegou a 30%. Em 2011, antes da criação da Lei, esse número correspondia apenas a 11%. Isso mostra um avanço e, consequentemente, também como as cotas raciais tem auxiliado no acesso ao Ensino Superior desses grupos.
Mariana Teles se considera uma mulher preta e ingressou em 2017 no curso de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp) por meio das cotas. “Acredito que as cotas raciais são importantes para que a população negra entre na universidade, um local que também é nosso por direito, mas que sempre nos foi tirado. É uma dívida histórica que precisa ser paga urgentemente”, afirma.
Essa dívida histórica que Mariana cita também é comprovada em outros dados estatísticos elaborados pela Agência Brasil, com base no IBGE:
Número médio de anos de estudo
Brancos: 10 anos
Negros: 8,2 anos
Pessoas sem instrução e Ensino Fundamental incompleto
Brancos: 33,5%
Negros: 48,9%
Ensino Médio completo e Superior incompleto
Brancos: 33,6%
Negros: 29,6%
Ensino Superior completo
Brancos: 22,9%
Negros: 9,3%
Esses dados refletem o que acontece na sociedade, com o pouco acesso ao ensino fica ainda mais difícil para que negros consigam ingressar no mercado de trabalho ou de crescer na carreira.
“A maioria dos educadores e pesquisadores da área entendem que o campo da educação é um campo de não só promoção, mas também um campo que possibilita a mudança social, uma transformação na vida do indivíduo, porque é a partir da educação que é possível ter um emprego com rendimento maior, ter acesso à cidadania e ao entendimento de quais são os seus direitos” reforça Dra. Gianne Telles.
O que é mais difícil: ingressar ou permanecer?
Apesar das barreiras para ingressar no Ensino Superior, aqueles que conseguem são obrigados a conviver com os preconceitos e a driblar os obstáculos que surgem na vida acadêmica.
Para Mariana, a maior dificuldade a ser enfrentada na universidade é aquela que já os ronda desde que nasceram, o racismo. “O maior desafio da pessoa negra na universidade não é nada que ela já não tenha enfrentado antes: o racismo. Mas, infelizmente, ele vem com um acréscimo muito maior. Estar na universidade, enquanto corpo preto, é sofrer racismo institucional, epistemicídio (a invisibilidade da produção não branca de conhecimento) e violências simbólicas. É todo dia sobreviver a um espaço que você sente que não é bem-vindo, lidar com docentes racistas e com grades curriculares que não são inclusivas”, aponta a estudante.
Um exemplo de violência simbólica são as pichações de cunho racista que surgem de tempos em tempos em instituições de ensino. Em 2015, o campus de Bauru na Unesp foi cenário de um desses casos, quando um dos banheiros da instituição foi pintado com declarações de ódio aos docentes e estudantes negros.
Para Dra. Gianne Reis, que é pesquisadora sobre cotas raciais em universidade brasileiras, uma forma de os negros e indígenas se fortalecerem dentro da faculdade é com a criação de coletivos, pois eles ajudam a discutir questões como o racismo, o preconceito e a como lidar com eles no dia a dia.
“Quando essas pessoas se reúnem dentro da universidade coletivamente, elas se tornam mais fortes e é uma forma de fazer pressão à reitoria e à universidade para que eles possam abrir as portas da instituição para discutir essa questão, e também para promover um debate que dê maior entendimento para as pessoas sobre essa política”, explica Reis.
Mariana faz parte do Coletivo Negro Dandara, da Unesp Assis, e conta que o coletivo também fez com que ela se sentisse parte de um grupo: “Todas as coisas que são propostas pelo coletivo, como as rodas de conversa, grupos de discussão e outros eventos, servem para a formação acadêmica e pessoal. Fui apresentada a muitos autores negros a que antes não tinha acesso, descobri coisas que antes não fazia a mínima ideia e também amadureci aquilo que já sabia. No pessoal, isso faz com que eu me sinta parte de algo que pode fazer a diferença em algum espaço”.
Além do racismo, a permanência estudantil é outro grande obstáculo apontado por Suzane Jardim, que é historiadora e militante no movimento negro. “Muitos candidatos cotistas desistem de suas vagas conquistadas por dificuldade em adquirir materiais de estudo, locomoção e pela necessidade de conciliar estudos e trabalhos, que é quase imperativa. Para além disso, são muitos os relatos de esgotamento psíquico de alunos negros que precisam arcar com a responsabilidade e os problemas de serem parte dos poucos negros em instituições de maioria branca”, frisa.
Juarez Tadeu de Paula Xavier, jornalista, doutor em Ciências da Comunicação, coordenador do Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão (Nupe) e presidente da Comissão Permanente de Verificação da Unesp, concorda que a permanência é ainda algo pouco discutido nas instituições públicas de ensino, porém lembra do caso da Universidade Federal do ABC (UFABC) que criou a “Pró-reitoria de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas”, que oferece apoio e bolsas socioeconômicas para que os alunos cotistas tenham condição de continuarem estudando.
“O grande desafio hoje é criar mecanismos para que o aluno cotista que ingressa na universidade tenha condições de se manter e de ter um apoio acadêmico para que a permanência dele seja mais produtiva para ele, para a universidade e para a sociedade”, explica Juarez.
Outra dificuldade: ingressar no mercado de trabalho
Apesar das dificuldades, milhares de negros se formam todos os anos (segundo dados do Censo da Educação Superior de 2016, 35,38% dos formandos do ano eram negros) com isso, é esperado que a quantidade de pretos e pardos no mercado de trabalho siga a tendência e aumente consideravelmente, mas isso não acontece.
Segundo um estudo feito em 2016 pelo Instituto Ethos, ao analisar as 500 maiores empresas brasileiras, foi possível descobrir que apenas 4,7% dos cargos executivos são compostos por pretos e pardos. Além disso, somente 8% das instituições que buscam promover a diversidade no quadro de funcionários possuem políticas voltadas para negros.
Suzane acredita que a melhor forma de aumentar a inserção de negros no mercado de trabalho é ampliar ainda mais essas políticas que visam aumentar a diversidade nas empresas.
“Temos agora uma massa de novos agentes se formando, porém ainda são poucas as ações no mercado de trabalho que visam absorver esse novo grupo especializado, afinal, o mercado de trabalho ainda carrega preconceitos típicos de uma nação em que o racismo é estrutural. Creio que dar oportunidade de estudo especializado é extremamente importante, mas isso deve ser acompanhado de medidas para que esses estudantes possam entrar no mercado de trabalho com dignidade”, reforça a historiadora e militante.
Em junho de 2018, o Ministério do Trabalho (MT) anunciou que o governo brasileiro criou um decreto com reserva de 30% das vagas para negros na contratação de estagiários e aprendizes no serviço público, a fim de reduzir a diferença entre negros e brancos no mercado de trabalho.
Helton Yomura, ministro do Trabalho, disse em nota que esse decreto vai ao encontro do grande aumento do saldo de contratações de aprendizes no Brasil, cerca de 42% em três anos, e com a oportunidade de afastar jovens negros do trabalho ilegal: “[esse decreto] vai caminhar no sentido positivo de impulsionar a inserção da população negra brasileira no mercado”, salientou.
Indígenas e a Lei de Cotas
Apesar da maioria das informações sobre cotas ser relativa a negros, é importante lembrar que a etnia indígena também é contemplada pela lei. Segundo levantamento feito pela Revista Quero, com base nos dados do Censo da Educação Superior de 2010 a 2016, o número de indígenas no Ensino Superior aumentou em 512%.
Além disso, esse dado também representa um aumento da proporção indígena em comparação ao total de estudantes universitários (0,64%). Em paralelo com os dados do Censo 2010, realizado pelo IBGE, é a primeira vez que essa taxa supera a proporção de indígenas em relação à população brasileira.
Mesmo que esses dados sejam sinônimo de uma vitória, essa etnia também sofre com o preconceito por serem cotistas e com a problemática da permanência no Ensino Superior. Em entrevista para a Revista Quero em 2017, Luiz Henrique Eloy Amado, que é um membro da tribo Terena, localizada em sua maioria na região Centro-Oeste, e advogado militante da causa indígena, contou situações embaraçadoras que passou durante sua graduação por ser cotista social.
“Você ouvia muitos comentários das pessoas que falavam ‘as pessoas que entraram pelas portas dos fundos da universidade’. Eles entendiam que, como entramos pelo sistema de cotas, nós não tínhamos capacidade de estar ali”. Luiz ainda conta que mesmo em trabalhos em grupo, os indígenas eram deixados de lado.
Além disso, a permanência de índios no Ensino Superior depende do suporte que ele recebe da instituição de ensino. O advogado explica que, além da ajuda financeira, é preciso acompanhamento para os alunos que têm dificuldade com o português, pois essa não é a língua materna da comunidade que muitos deles cresceram, e também com o manuseio de tecnologias.
Essa reportagem faz parte de uma série da Revista Quero sobre cotas raciais. Quer saber mais sobre assunto? É só clicar aqui:
Qual é o perfil do cotista racial no Brasil, segundo o Enem?
Como saber se eu tenho direito a Cotas Raciais?