Em 2018, a modelo Mariana Ferrer, 21 anos, trabalhava como embaixadora num famoso clube de Florianópolis, em Santa Catarina. O que era para ser só mais um dia comum de trabalho se tornou um pesadelo.
Segundo Mariana, que era virgem, ela foi dopada e estuprada dentro do clube por um homem com quase o dobro de sua idade, o empresário André de Camargo Aranha. Quando o caso veio a público, a modelo passou a ser acusada de mentirosa, taxada como promíscua e culpabilizada por seu próprio estupro.
Infelizmente, a história de Mariana não é um caso isolado. É mais um nas estatísticas que escancaram a realidade das mulheres vítimas de violência sexual no Brasil. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, foi registrado um estupro a cada 8 minutos no país.
Dos 66.123 casos de estupros de 2019, 85,7% dos alvos eram mulheres. Além disso, a maioria das vítimas (70,5%) são crianças e adolescentes menores de 14 anos, o que caracteriza estupro de vulnerável.
De acordo com o Código Penal Brasileiro, o crime de estupro é definido como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Antes de 2009, era considerado estupro somente quando havia a conjunção carnal.
Nesse cenário, o medo de se tornar mais um vítima da violência sexual assombra as mulheres, sejam elas crianças, adolescentes ou adultas. E, por que isso acontece? A resposta não é tão simples mas pode ser sintetizada em uma expressão: a cultura do estupro.
O que é a cultura do estupro?
O termo cultura do estupro foi criado na década de 1970, pela segunda onda do movimento feminista, que lutava por direitos iguais, igualdade no mercado trabalho e na família, liberdade sexual e direitos reprodutivos.
Segundo a definição do Centro das Mulheres da Universidade Marshall, a cultura do estupro é um ambiente no qual o estupro é predominante e a violência sexual contra a mulher é normalizada pela mídia e pela população.
Esse fenômeno recebe o nome de cultura porque ele não ocorre de maneira natural; é o resultado da naturalização de estruturas, normas, valores e práticas sociais que inferiorizam as mulheres.
Assim, o ato do estupro é apenas a consequência final de uma cultura machista, perpetuada pelo uso de linguagem misógina, objetificação os corpos femininos e exaltação da violência contra mulher - seja ela física, moral, sexual, psicológica ou patrimonial.
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No Brasil, a origem do cultura do estupro remete à origem do próprio povo brasileiro. Isso porque o processo de miscigenação do Brasil tem suas raízes na violência sexual contra as mulheres indígenas e negras, escravizadas e violentas pelos colonizadores europeus.
Até hoje, a cultura do estupro está presente nas piadas machistas, nas cantadas que pertubam as mulheres na rua, no assédio no trabalho, no julgamento sobre sua aparência e suas roupas, nos pensamentos de que “Briga de marido e mulher não se mete a colher” ou “Ela não se dava ao respeito”, entre tantos outros.
Frutos do patriarcado
A cultura do estupro tem suas bases num sistema ainda mais forte e enraizado: o patriarcado - um sistema no qual os homens são considerados superiores e oprimem as mulheres.
A própria definição de gênero é desigual, visto que o papel do homem e o papel da mulher são socialmente construídos. Existe um padrão de comportamento esperado dos homens, a masculinidade, e outro diferente esperado das mulheres, a feminilidade.
Nas sociedades patriarcais, os meninos são criados para serem fortes, corajosos, agressivos e dominadores. Já as meninas são ensinadas a serem delicadas, frágeis, submissas e maternais.
Objetificação da mulher
Outro fator que contribui para a cultura do estupro é a objetificação dos corpos femininos. Também baseada na lógica patriarcal, ela surge da concepção de que a função da mulher é servir o homem, inclusive o satisfazendo sexualmente.
Mesmo hoje, as mulheres ainda não são totalmente vistas como autônomas e donas do próprio corpo. Elas são objetificadas, isto é, reduzidas a meros objetos de prazer sexual masculino, sem considerar seus aspectos intelectuais, psicológicos e emocionais. A objetificação das mulheres fica clara, principalmente, em peças publicitárias, nas quais as mulheres são sexualizadas e estereotipadas.
Enquanto o corpo feminino é tido como objeto sexual, os homens são estimulados a exaltar sua sexualidade de forma agressiva e irracional. Esses estereótipos reforçam ideias distorcidas que justificam a cultura do estupro, como a de que homens não conseguem controlar seus instintos sexuais.
O estuprador não é um “louco”
Quando se pensa em um estuprador, logo vem à mente a imagem de um desconhecido num beco escuro ou de um indivíduo com problemas psicológicos. Mas, esse perfil de agressor sexual corresponde à minoria dos casos.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 aponta que 84,1% dos estupros foram cometidos por pessoas próximas da vítima, como pais, padrastos, companheiros, tios, irmãos, amigos da família ou outros parentes.
Na ótica da sociologia, o comportamento criminoso é, em sua maioria, condicionado por fatores sociais. “Não é apenas uma má escolha do indivíduo, é uma má escolha do indivíduo que está em um conjunto social que favorece essa má escolha”, explica Antonio Engelke, professor de Sociologia do Ensino Médio da Escola Nova.
No contexto da cultura do estupro, o professor destaca que há uma diferença entre analisar o problema do estupro somente como um desvio individual e avaliar seus condicionantes sistemicos mais amplos.
“Isso é uma discussão que nos leva a examinar o patriarcado, as bases ideológicas do machismo, como é que ele se perpetua nas instituições, quais são os mecanismos que garantem seu funcionamento. Ou seja, são argumentos que estão para além, simplesmente, da ação criminosa de um homem que resolveu estuprar”, afirma.
Subnotificação dos casos
No primeiro semestre de 2020, o país já registrou 25.469 casos de estupros, segundo o Anuário de Segurança Pública. Mas, esses números não dão conta da realidade do Brasil. Isso porque o estupro é um dos crimes mais subnotificados do mundo, ou seja, somente uma pequena parcela dos casos chegam à polícia.
Entre os motivos que levam as vítimas a desistir da denúncia, estão: medo do agressor, vergonha e sentimento de culpa, falta de apoio da família, desestímulo por parte das autoridades e descrença na justiça brasileira.
Culpabilização da vítima
Na cultura do estupro, o sofrimento das mulheres violentadas não termina com a denúncia à polícia. É comum que as vítimas de violência sexual sejam questionadas sobre a veracidade de sua denúncia e ouçam perguntas como:
- “Onde você estava?”
- “Que roupa você vestia?”
- “Você estava bêbada?”
- “Certeza que você não queria?”
Entretanto, o mesmo não ocorre com outros crimes. Vítimas de roubo, por exemplo, não são questionadas se estão contando a verdade mesmo, nem perguntadas onde estavam ou como se vestiam.
Essa é outra face da cultura do estupro: a culpabilização das vítimas. Ao invés de culpar única e exclusivamente o agressor, muitas vezes o estupro é justificado pelo comportamento ou vestimenta da vítima, por frases como “Ela mereceu” ou “Com essa roupa, ela está pedindo para ser estuprada”.
Na pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres”, divulgada em 2014 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 58,5% dos entrevistados concordaram com a ideia de que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.
No caso de Mariana Ferrer, em setembro deste ano, apesar de todas as provas apresentadas, o empresário foi inocentado após julgamento em primeira instância. O caso ganhou ainda mais repercussão nas redes sociais, sob a hashtag #justiçapormariferrer, e nas mídias depois do vazamento do vídeo da audiência, na qual Mariana é humilhada pelo advogado de André, que tenta desqualificar o caráter da vítima.
Como combater a cultura do estupro?
A manutenção da cultura do estupro perpetua a violência contra a mulher na sociedade. E, para quebrar esse ciclo de medo e violência, é preciso repensar a criação dos meninos e das meninas e desconstruir o sistema patriarcal que oprime, objetifica e culpabiliza as mulheres.
O site do Centro das Mulheres da Universidade Marshall lista algumas atitudes para combater a cultura do estupro, confira:
Evite usar linguagem que objetifique ou degrade as mulheres;
Fale se ouvir outra pessoa fazendo uma piada ofensiva ou banalizando o estupro;
Se uma amiga disser que ela foi estuprada, leve-a a sério e apoie;
Pense criticamente sobre as mensagens da mídia sobre mulheres, homens, relacionamentos e violência;
Respeite o espaço físico dos outros, mesmo em situações casuais;
Sempre se comunique com seus parceiros sexuais e não presuma o consentimento;
Defina sua própria masculinidade ou feminilidade. Não deixe que os estereótipos moldem suas ações;
Se envolva! Junte-se a um estudante ou grupo comunitário que trabalha para acabar com a violência contra as mulheres.
Pode cair na redação do Enem?
Para Daniel Massa, professor de Redação da Escola Nova, o tema cultura do estupro dificilmente será cobrado na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
“Em 2015, a proposta foi ‘A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira’, tema que engloba a violência sexual. No entanto, isso não impede que esta questão possa fazer parte de outros importantes vestibulares, justamente por sua relevância”, justifica.
O professor Daniel alerta que a temática cultura do estupro já traz uma problematização em si, pois trata de uma violência que precisa ser combatida. Portanto, não cabe ao candidato discordar a respeito do tema.
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Na hora de argumentar sobre o tema, a dica do professor é se pautar pelas causas e consequências da cultura do estupro. Entre as causas, Daniel aponta a ausência de um debate sobre questões de gênero nas escolas, o fortalecimento na mídia de uma imagem de submissão da mulher e o avanço de discursos reacionários na sociedade.
Para as consequências, ele sugere que o estudante busque estatísticas que mostrem o número de vítimas e a falta de apoio para realizar denúncias ou receber o acolhimento necessário diante da violência sofrida.
Além disso, o professor recomenda que os candidatos respeitem os direitos humanos em seu texto e se afastem de discursos reacionários e violentos que culpabilizam a vítima no lugar de se debruçar sobre as verdadeiras causas do problema.
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