Em janeiro deste ano o Think With Google, uma página de análise de dados e tendências de mercado do Google, publicou um artigo sobre as cinco maiores urgências da população negra. A primeira, de acordo com o estudo, é a inclusão no mercado de trabalho.
Para chegar a essa conclusão, foram entrevistados especialistas, criadores do youtube, assim como homens e mulheres autodeclarados pardos e pretos. Destes, 46% classificaram a inclusão no mercado de trabalho como a primeira urgência e acreditam que o tema é muito menos debatido do que deveria.
No momento, o Brasil encontra-se em recessão econômica, fator que reflete na oportunidade de emprego, mas os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a situação é ainda pior para a população negra. Dos 12,6 milhões de desempregados em 2019, 65% são negros.
Joyce Afonso (30), jornalista formada pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), conta que o tema empregabilidade faz parte dos debates em que participa. “Eu percebo que isso é a maior questão. E não só estar empregado, mas estar em condições de igualdade com pessoas brancas em ambiente de trabalho”, conta.
Apesar de considerar-se privilegiada por ter tido uma boa formação e não ter encontrado dificuldade para estar empregada ao longo de sua carreira, Joyce afirma ter vivenciado situações racistas durante entrevistas de emprego.
“Fiz umas duas entrevistas em ambientes corporativos e, claramente, eu senti olhares de que aquilo não era pra mim. Também já aconteceu de eu fazer entrevista para áreas de média gestão em que na hora em que me viu a pessoa perdeu o interesse de conversar. Por mais que eu tenha feito um teste que foi muito bom e tenha sido elogiada, na hora da conversa não havia interesse na minha pessoa. Então as perguntas foram completamente evasivas e eu senti que aquele momento estava sendo protocolar, só para que eu não perdesse o meu tempo”, relata.
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Desigualdade salarial
A diferença no ambiente profissional também é refletida no salário. Mesmo quando contratados, os negros recebem 45% a menos do que os brancos. Entre pessoas com Ensino Superior completo, a diferença é de 31%.
Para mulheres negras, a porcentagem é maior. Elas recebem o equivalente a 55% do salário de um homem branco, enquanto as mulheres brancas recebem 76%. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e do Observatório de Igualdade do Trabalho e também fazem parte do estudo do Google.
“Cobram muito as pessoas negras de que elas sejam sempre as melhores, que elas nunca podem desistir, que precisam ser fortes, lidar com o racismo, mas ao mesmo tempo não deixar isso abalar a vida delas. Então parece que para as pessoas brancas no ambiente profissional, sempre há a opção de fracassar ou a opção de desistir. E para a gente não, para a gente fracassar ou desistir pode ser associado ao tom da nossa pele. [Por isso] a gente tem que ser duplamente melhor pra mostrar que pretos podem, sim, ser tão bons profissionais ou até melhor do que pessoas brancas. Então a gente carrega um fardo, uma responsabilidade e é tudo muito mais pesado. É muito mais difícil crescer profissionalmente sendo uma pessoa negra e, no meu caso, mulher e negra”, desabafa Joyce.
Negros em cargo de liderança
Quando o assunto é negros em cargos de liderança a diferença é significativa. Um estudo do Instituto Ethos com 500 empresas de maior faturamento do País aponta que apenas 6,3% dos negros ocupam cargo de gerência e 4,7% fazem parte do quadro executivo.
“Eu percebi até o ano passado, que o patamar de carreira que amigos com a mesma idade que eu ou pouco mais novos, que se formaram na mesma universidade e estudaram em bons colégios, era melhor que o patamar de carreira que eu estava alcançando, mesmo eu tendo tanta competência quanto eles ou correndo atrás tanto quanto eles ou até mais, desde o início. [...] As pessoas negras precisam entrar nas empresas e ver negros em alta gestão, porque enquanto isso não acontecer a gente vai continuar vivendo esse tipo de situação no Brasil. E não adianta contratar negros e não promover negros”, desabafa Joyce.
De acordo com o professor de comunicação da Universidade Estadual Paulita (Unesp) e coordenador executivo do Núcleo Negro para a Pesquisa e Extensão (NUPE) da instituição, Juarez Xavier, as desigualdades entre negros e brancos no País existem desde a escravidão. "Nenhum país passa de forma impune por essa experiência de quase 400 anos. Ao final desse processo [de escravidão], de forma intencional, segregou-se o negro, e procurou-se branquear o país, com o forte processo de imigração, entre as décadas de 1870 e 1930. No século 20, quando há a construção das bases modernas do Brasil , consolidam-se a concentração de renda, cultural, poder e prestígio nas mãos de uma minoria social branca, que transforma seus privilégios em direitos", explica.
Jady Togni (20), membra do coletivo de mulheres Nandi, ressalta a importância de toda a sociedade se mover contra isso. "Não é responsabilidade só da população negra lutar contra o racismo. Lógico que ela luta, até por questão de sobrevivência. Mas quem deveria ser responsabilizado e tem a obrigação de eliminar esse problema é quem se beneficia dos efeitos do racismo, não quem sofre", conta.
Políticas de inclusão
O Brasil possui algumas medidas de inclusão como a Lei nº 12.288, em vigor desde 2009, que institui o Estatuto de Igualdade Racial e que tem como um de seus objetivos "promover a inclusão e a igualdade de oportunidades e de remuneração das populações negra, indígena, quilombola e cigana no mercado de trabalho", além de "combater o racismo nas instituições públicas e privadas, fortalecendo os mecanismos de fiscalização quanto à prática de discriminação racial no mercado de trabalho".
Além disso, por meio da Lei nº 12.990, 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para cargos efetivos e empregos públicos na administração pública federal, fundações e públicas. Já o decreto nº 9.427 reserva 30% das vagas de estágio no setor público para negros.
É importante ressaltar, porém, que normalmente os concursos públicos são voltados para pessoas que tenham concluído o Ensino Médio ou o Ensino Superior. De acordo com o IBGE, 36,9% da população negra não concluiu o Ensino Médio e 64,2% não possui o Ensino Superior completo. Além disso, o índice de reprovação entre os negros (23,5%) é quase duas vezes maior que o de brancos (7,3%), segundo dados do Censo da Educação Básica de 2018.
Para o professor, por tratar-se de um problema histórico, políticas mais intensas e abrangentes são necessárias para sua resolução. "Sem enfrentar toda essa situação, o País patinará na lama da desigualdade, histórica e sistematicamente construída, não como um acidente, mas como um projeto. Precisamos de políticas públicas de Estado, e não apenas de governo, que ajude a desmontar a pedra angular do racismo, do patriarcado e do supremacismo de classes", conclui.
*Acesse o relatório completo do Think With Google aqui
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