Em nove meses de pandemia, ainda sem perspectivas de quando a vida social retornará por completo, chegamos ao número estonteante de 188.259 mortes associadas ao coronavírus, de acordo com os últimos dados divulgados pelo Ministério da Saúde até a finalização desta reportagem.
Entre os sobreviventes, os esforços se concentram em se proteger contra o vírus e contra a crise econômica, resultante da crise sanitária. Esse último, nem sempre com sucesso. Exemplo disso é o número de desempregados, que chegou a 14,1 milhões no terceiro trimestre de 2020, segundo dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua). Só entre julho e setembro, mais de 1,3 milhão de pessoas ficaram desempregadas.
Ao analisar os detalhes por trás desses números, porém, é possível perceber que a crise sobre o mercado de trabalho afetou, de forma mais intensa, um gênero específico. A partir do percentual de desocupação, é possível constatar que a taxa de desemprego foi de 12,8% para os homens e 16,8% para as mulheres.
Essa desproporção foi um dos fatores que fez com que as mulheres atingissem 46,3% de participação média no mercado de trabalho entre abril e junho deste ano, menor taxa em 30 anos. Os dados são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
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“A maior parte das mulheres, da população mais vulnerável, está inserida em setores econômicos e em ocupações que foram, de certa forma, paralisadas. O trabalho por conta própria, o trabalho informal e o trabalho doméstico são, justamente, atividades em que, pelo grau de precariedade, as pessoas não tinham proteção, não tinham acesso ao seguro-desemprego, não tinham a opção do teletrabalho, do home office. Parte das mulheres estão nos serviços domiciliares, estão trabalhando como cabeleireiras, manicures, vendedoras ambulantes, vendedoras a domicílio e essas atividades foram totalmente interrompidas, então essas pessoas se viram, de um momento para outro, sem trabalho, sem renda, e foram forçadas a ter que recorrer ao auxílio emergencial. E mesmo que elas quisessem voltar ao mercado de trabalho elas não iriam encontrar, inclusive, oportunidades e condições. Primeiro por conta de todas as medidas de isolamento e outra porque não há oferta, demanda de trabalho para essas ocupações”, explica a economista Marilane Teixeira.
Ela observa, ainda, que sem o auxílio emergencial o impacto poderia ter sido muito maior na vida das mulheres brasileiras, mas, ainda assim, é um valor menor do que elas recebiam em seus respectivos trabalhos. “O auxílio emergencial, embora fundamental, ficou num valor muito insuficiente do que eram as necessidades das pessoas e claro que isso tem um impacto sobre a economia, de uma forma geral. Porque as pessoas, praticamente, estão vivendo com um valor mínimo para sobreviver, então provavelmente devem estar acumulando dívida, deixando de pagar várias contas, porque um valor como esse, basicamente, é suficiente apenas para garantir a compra de alimentos e com a redução do auxílio emergencial a partir de setembro, as pessoas foram forçadas a voltar a procurar trabalho. Também volta com muita força a pandemia, a segunda onda. Ela reflete uma certa negligência de uma parte da sociedade que flexibilizou as medidas, mas também uma pressão entre as pessoas mais pobres e vulneráveis, as mulheres, de ter que se forçar a buscar trabalho porque o auxílio emergencial se já era pouco ele praticamente se tornou um valor insuficiente”, avalia.
Ainda de acordo com o Ipea, outra causa apontada para a queda da participação de mulheres que estão em situação ativa no mercado de trabalho - ou seja, empregadas ou em busca de um emprego - foi o aumento das responsabilidades domésticas. Em relação aos afazeres de casa e ao cuidado de pessoas, o índice de participação se inverte entre os gêneros. O relatório Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, feito pela Sempreviva Organização Feminista (SOF), informa que 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia. Destas, 46% são mulheres brancas e 52% são negras. Já a necessidade de monitoramento e companhia, no caso de crianças, idosos ou pessoas com deficiência, aumentou para 72% das mulheres.
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Segundo dados da Pnad Contínua de 2019, mulheres com 14 anos de idade ou mais dedicam 21,4 horas semanais a atividades domésticas ou cuidado de pessoas, enquanto para os homens, a média é de 11 horas para exercer as mesmas funções. A diferença de horas dedicadas a essas atividades entre homens e mulheres saltou de 9,9 para 10,4 horas semanais entre 2016 e 2019, respectivamente.
Para Nana Lima, diretora na consultoria de inovação social que propõe soluções para desigualdade de gênero, Think Eva, esse é um ponto que precisa ser muito trabalhado, pois reflete em aspectos como “o homem poder ter um papel mais social, mais ativo, não apenas de provedor, mas ativo dentro da casa, com os filhos, com o cuidado da casa. As mulheres também poderem estar mais focadas na sua carreira porque elas não precisam ser a única responsável por tudo da casa, cuidado, cuidado com os avós, com os pais”, ressalta.
“Qual é o impacto da paternidade na carreira de um homem? Nada. Todas as minhas amigas que têm essa faixa de 30 e 35, vão procurar emprego, e todo emprego pergunta se quer ter filho e eu não vejo isso ser perguntado para os meus amigos homens”, Nana Lima, diretora da Think Eva.
Enquanto o trabalho de cuidado impossibilita uma parcela das mulheres de ingressar no mercado profissional, para outras, ele representa uma jornada extra, também conhecida como dupla jornada.
Bárbara Mello (25) é professora e alterna seus horários para dar aula em uma escola, prestar serviços para uma empresa, dar aulas particulares, cuidar da casa e do filho de três anos. “Essa rotina iniciou após a pandemia, pois tive meu salário reduzido e estava me separando. Precisava de outra fonte de renda para conseguir manter eu, meu filho e a casa sozinha. Então a rotina ficou muito maluca logo que comecei a dar as aulas particulares, foi difícil conciliar o tempo de preparo das aulas com todas as outras coisas. Noites mal dormidas e finais de semana trabalhando também”, conta.
De acordo com Nana, o trabalho do cuidado funciona como um subsídio para a economia funcionar do jeito que funciona atualmente. “Uma criança vestida, com banho tomado e alimentada numa escola, por exemplo, alguém teve que fazer esse trabalho ou o homem também, se o homem está no trabalho provavelmente alguém está cuidando da casa dele, alguém está cuidando dos filhos dele, alguém está fazendo a comida dele. É entender que o homem tem tanta responsabilidade [quanto as mulheres], desassociar esse cuidado ao gênero feminino e entender que qualquer pessoa poderia exercer isso e começar a valorizar isso como sociedade”, reflete.
Um dos resultados da falta de distribuição de responsabilidades de forma igualitária entre os gêneros, é a sobrecarga feminina. “Voltei a ter crises de ansiedade no meio disso tudo, mas como já tinha passado por isso antes consegui identificar alguns gatilhos. No momento eu não consigo bancar uma terapia, mas futuramente eu vou conseguir e sei que preciso. Eu tento ser honesta comigo mesma, eu sei que não preciso dar conta de tudo”, compartilha Bárbara.
Para a economista Marilane Teixeira, é fundamental que as atividades domiciliares sejam de responsabilidade social. “Quais são as políticas públicas necessárias e essenciais para reduzir a sobrecarga que existe hoje, no âmbito das famílias, que recai sobre as mulheres? Não só do ponto de vista dos afazeres domésticos, mas também do cuidado com idosos, com doentes e com crianças. Isso também tem que ser visto como responsabilidade social, uma responsabilidade do Estado”, indaga.
Desigualdade de gênero no mercado de trabalho antecede a pandemia
Apesar de se tornarem mais acentuadas durante a pandemia, tanto a dupla jornada, quanto a baixa participação no mercado de trabalho já são familiares às mulheres brasileiras.
A Pnad Contínua, feita pelo IBGE no primeiro trimestre de 2020, apontou que as mulheres eram maioria na população em idade de trabalhar, mas, ainda assim, a maior parte da população que trabalhava era formada por homens, em todas as regiões do País. A taxa de participação no mercado de trabalho masculina foi equivalente a 56,2% enquanto o percentual de participação das mulheres foi de 43,8%. O estudo aponta que parte delas não têm a possibilidade de deixar os filhos em creches, uma das causas para elas ocuparem menos esse espaço.
Outro fator a ser levado em consideração é que os homens recebem 28,7% a mais que as mulheres na média salarial mensal, ainda segundo dados da Pnad Contínua 2019. Eles recebem R$ 2.555, em média. Em contrapartida, as mulheres ganham R$ 1.985.
De acordo com Teixeira, isso é resultado da divisão sexual do trabalho, que, segundo ela, “se organiza a partir de duas perspectivas: primeiro da separação - o que é trabalho de homens e o que é trabalho de mulheres - e a hierarquização - porque a atividade de homens é mais valorizada que a atividade de mulheres. Isso é um debate que tem a ver com a dimensão dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, homens e mulheres são socializados de forma diferente. Os homens para trabalhar e ocupar os espaços públicos, [ser] o provedor, e as mulheres para [fazer] as tarefas de casa e de cuidados e tudo o que se relaciona com a natureza e com o afeto. Isso é construído socialmente, não tem nada de natural em relação a esses papéis. Então você tem uma dimensão cultural de como esses valores vão sendo reproduzidos pelas gerações e como isso é conveniente, do ponto de vista das próprias relações patriarcais. Os homens, de certa forma, se favorecem dessa relação desigual e o sistema econômico também, de certa forma, é favorecido por essa relação, porque é conveniente para o sistema que uma parte da reprodução da força de trabalho seja viabilizada pelas mulheres no âmbito das famílias. Porque isso também faz com que o tempo necessário para a reprodução da força de trabalho tenha um valor menor, se parte dele é viabilizado pelas mulheres gratuitamente no âmbito das famílias”, revela a economista.
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Outra explicação apresentada por Teixeira para a desigualdade salarial é o fato de que muitas mulheres estão em ocupações e profissões menos valorizadas. “Os homens estão nas atividades, nas especialidades médicas mais reconhecidas, nos cargos de direção, chefia, enquanto que as mulheres são recepcionistas, enfermeiras, atendentes, assistente social então, claro, na média, o que vai acontecer é que a média do salário vai ser menor que dos homens. Se você entrar dentro de uma fábrica, por exemplo, [vai] ver que as mulheres estão no chão de fábrica, trabalhando na linha de produção e os homens são supervisores, encarregados, tiveram maior chance e possibilidade de ascender. Então você vai olhando em diferentes atividades econômicas uma divisão sexual do trabalho, quem é que ascende, quem é que tem cargos melhores e quem não consegue ascender e permanece realizando as mesmas atividades. Então isso está na raiz das divisões e na má distribuição em termos salariais”.
“E, portanto, quando você olha do ponto de vista do mercado, se as atribuições, aquilo que é identificado como sendo feminino, o trabalho dos cuidados, educação, saúde, assistência, tudo isso, quando você transfere isso para o mercado, quando uma parte desses serviços eles são ofertados no mercado eles também são desvalorizados porque estão associados ao sexo feminino. É como se as mulheres já tivessem nascido com essas habilidades, então, portanto, elas não precisam se qualificar para adquirir essas habilidades, porque essas habilidades são parte da naturalidade do sexo, do ser feminino”, completa.
Gênero e raça: mulheres negras são duplamente afetadas no mercado de trabalho
Ao debater sobre a questão desigualdade de gênero, é preciso abrir um parênteses sobre o fato de que mesmo entre as mulheres há diferentes níveis de impactos. Na pirâmide salarial, por exemplo, as mulheres negras estão na base. De acordo com o estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, desenvolvido pelo IBGE e publicado em 2019, mulheres pretas e pardas recebem menos da metade do salário de homens brancos, com um percentual de 44,4%.
“No caso das mulheres negras, isso é muito mais aviltante, porque ela está confinada no trabalho doméstico que paga, no máximo, um salário mínimo, ou em atividades como cabeleireira, manicure, vendedora, que são as atividades que pagam menos e que têm menos reconhecimento”, declara Teixeira.
O acesso à formação no Ensino Superior também é significativamente menor para mulheres negras. A pesquisa Estatísticas de Gênero - Indicadores sociais das mulheres no Brasil, realizada pelo IBGE e divulgada em 2018, revelou que apenas 10,4% das mulheres negras concluem o Ensino Superior no Brasil. Segundo a economista, porém, mais da metade das mulheres que possuem o diploma de graduação não atuam na área de formação.
Elas também são destaque quando o assunto é informalidade. Em 2018, a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, reportou que 47,8% das mulheres negras desempenham trabalhos informais no País. No período de julho a novembro deste ano, Gisele Pereira (30) fez parte desse grupo. Após sair de um emprego onde atuava no setor comercial, no final do ano passado, ela teve dificuldades de se recolocar no mercado de trabalho, por conta da pandemia. “Até então eu recebia seguro-desemprego, a última parcela foi em abril e eu achei que naquela data eu iria estar com trabalho já engajado e, depois disso, eu fiquei trabalhando de Uber direto. Eu não consegui receber o auxílio emergencial, então tive que refinanciar o carro, pagava o aluguel e nesse meio tempo a dona pediu o apartamento que eu morava porque eu dei uma atrasada e ela também não foi muito flexível, então foi uma bagunça minha parte financeira”, desabafa. Apesar de ter conseguido uma oportunidade de emprego em meados de novembro, ela segue atuando como motorista de aplicativo para complementar sua renda. “Agora está uma batida bem frenética para recuperar o tempo perdido dos meses passados”, conta.
O trabalho doméstico também deve ser levado em consideração ao mencionar o trabalho informal, pelo volume de trabalhadores que exercem essa função. O estudo Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: Reflexões para o Caso Brasileiro, feito pelo Ipea em 2018, revelou que dentre as mulheres ocupadas, 14,6% são trabalhadores domésticas. Ao fazer o recorte racial, percebe-se que entre as mulheres negras ocupadas, 18,6% se dedicam a essa atividade, contra 10% de mulheres brancas.
Embora a PEC das Domésticas, em vigor desde 2015, tenha regulamentado a profissão, ela não contempla o trabalho das diaristas, que representam 44% dos trabalhadores domésticos, segundo o relatório do Ipea. “Na nossa legislação, para muitas coisas, ainda tem pontos cegos. Um deles é o caso da diarista. Nós temos o trabalho da doméstica regulado por uma lei complementar, que diz que a trabalhadora doméstica só é considerada doméstica para o efeito daquela lei se ela trabalha na casa de família acima de três dias. Isso significa que eu tenho um universo muito grande de trabalhadoras que são as diaristas. Que é aquela trabalhadora que faz faxina uma vez por semana ou até duas vezes por semana e não tem vínculo de emprego. É um número muito grande, a gente está falando da maior categoria feminina do Brasil, que são as trabalhadoras domésticas. O emprego sem carteira de trabalho é um emprego que você não necessariamente tem garantia de salário digno, que não tem garantia de controle de jornada, do horário noturno e uma série de outros direitos que um trabalhador de carteira tem”, informa a advogada trabalhista da rede de advocacia feminista Themis, Bruna Marcondes.
“Uma pessoa que vive de faxina não tem reserva, não tem poupança. E, ao mesmo tempo, ela não consegue acessar políticas de proteção ao emprego. O FGTS, o seguro-desemprego, que garante que se a pessoa for demitida ela vai ter pelo menos um valor que ela vai receber por um período enquanto ela procura um novo trabalho. Ela não vai ter nenhum seguro social pelo INSS, o que significa, inclusive, que se ela pegar covid, ela não tem de onde tirar renda. Isso são fatores que levam uma população à completa miséria. Porque se você não tem a receita do seu trabalho constante, você pode perder sua casa, perder o seu carro, muitas pessoas foram morar na rua nesse contexto”, revela.
O que já temos?
A desigualdade de gênero é um problema estrutural manifestado, no âmbito do mercado de trabalho, desde o acesso às ocupações profissionais qualificadas, até a precariedade desse acesso e as escassas possibilidades de ascensão profissional, já que o International Business Report - Women in Business 2019, revelou que 25% das mulheres no Brasil ocupam cargos de liderança, índice abaixo da média global de 29%.
Porém, ao longo dos anos, algumas políticas foram desenvolvidas para reduzir a dimensão do problema. As principais delas estão na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que estabelece regulamentações sobre o mercado de trabalho. Ela diz respeito, justamente, às condições de trabalho para mulheres, e à discriminação.
O artigo 373 A diz o seguinte:
Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado:
I - publicar ou fazer publicar anúncio de emprego no qual haja referência ao sexo, à idade, à cor ou situação familiar, salvo quando a natureza da atividade a ser exercida, pública e notoriamente, assim o exigir;
II - recusar emprego, promoção ou motivar a dispensa do trabalho em razão de sexo, idade, cor, situação familiar ou estado de gravidez, salvo quando a natureza da atividade seja notória e publicamente incompatível;
III - considerar o sexo, a idade, a cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional;
IV - exigir atestado ou exame, de qualquer natureza, para comprovação de esterilidade ou gravidez, na admissão ou permanência no emprego;
V - impedir o acesso ou adotar critérios subjetivos para deferimento de inscrição ou aprovação em concursos, em empresas privadas, em razão de sexo, idade, cor, situação familiar ou estado de gravidez;
VI - proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não obsta a adoção de medidas temporárias que visem ao estabelecimento das políticas de igualdade entre homens e mulheres, em particular as que se destinam a corrigir as distorções que afetam a formação profissional, o acesso ao emprego e as condições gerais de trabalho da mulher.
A Lei também garante às mulheres o direito de sair para consultas e exames médicos durante a gestação, sem descontos salariais. Além disso, a Lei 9.029, promulgada em 1995, alega que as mulheres possuem o direito previsto na CLT à licença-maternidade de 120 dias a partir do oitavo mês da gravidez, podendo chegar a 180 dias caso a empresa esteja cadastrada no programa Empresa Cidadã. Para os pais, no entanto, a licença-paternidade tem duração de cinco dias, podendo ser estendida para até 20 dias. Embora a responsabilidade sobre os filhos seja a mesma, o período de licença é significativamente desproporcional para homens e mulheres.
De acordo com a advogada especializada em direito das mulheres, Ana Paula Braga, essa diferenciação fomenta a desigualdade de gênero. “Primeiro porque passa um recado claro de que as tarefas de cuidado são senão exclusiva, majoritariamente femininas. Segundo porque, ainda que haja a previsão da estabilidade do emprego durante esse período, na prática, as mulheres acabam sendo mais prejudicadas, seja por não conseguirem competir de igual para com seus demais colegas, seja por dispensas discriminatórias após o período de estabilidade. Em outros países, como na Finlândia, a licença parental é dividida entre ambos os genitores. No Brasil, o ideal é que essa mudança venha através de lei, mas nada impede que empresas também adotem suas próprias medidas. Um exemplo disso é o programa Empresa Cidadã, que estende de 5 para 15 dias a licença paternidade (o que ainda é insuficiente, mas já é uma melhora)”, comenta.
Marcondes alerta, no entanto, para o fato de que essa política não atingiria a todas as mulheres. “Isso alcança uma fatia de trabalhadores e trabalhadoras que têm ou mais remuneração, ou emprego mais estável, ou que vão disputar salários mais altos. Nós temos no Brasil uma explosão de crianças sem pai, crianças que sequer têm o pai no registro. Mulheres negras sentem essa desigualdade com um outro peso”, salienta. Os dados levantados pelo IBGE em 2015 indicam que há 11,6 mães solo no Brasil. Para elas, a licença paternidade não resolveria o problema, visto que elas não contam com um parceiro com quem possam compartilhar as responsabilidades parentais.
Às mulheres também é assegurado o direito a dois intervalos de meia hora para amamentação, durante o expediente, para mães de bebês de até seis meses. Além disso, em casos de aborto - nas situações em que ele é permitido por lei, a mulher possui direito à duas semanas de licença.
O Decreto Nº 4.377/2002 também menciona direitos para mulheres na esfera do trabalho, no artigo 11. Tais como direito à seguridade social em casos como aposentadoria, desemprego, invalidez, velhice ou outra incapacidade para trabalhar, assim como direito de férias pagas; direito à proteção da saúde e à segurança nas condições de trabalho; fornecimento de serviços sociais de apoio para permitir que os pais possam conciliar obrigações com a família, trabalho e vida pública.
Deve-se considerar, ainda, a Lei 13.718/2018, que passa a criminalizar a importunação sexual. Embora não seja específica para o meio profissional, ela também se aplica nesse ambiente e protege mulheres vítimas de assédio no local de trabalho. O assédio moral, o qual se configura por meio da exposição de uma pessoa a situações humilhantes, também é considerado crime pela Lei 12.250/06.
Na prática, porém, os dados apresentados ao longo da reportagem evidenciam que as legislações não têm sido o suficiente para garantir um espaço qualificado e condições justas para as mulheres no meio profissional. “Sem compromisso social e isso envolve não só o empregador mas também todo um poder público que fiscalize e que tenha uma postura mais efetiva em relação à proteção desses direitos, a lei é letra morta”, declara Marcondes.
Para além das legislações e decreto existentes, alguns Projetos de Lei estão em trâmite no Congresso Nacional. São eles:
Projeto de Lei da Câmara 130/2011: propõe multa para combater a desigualdade salarial;
Projeto de Lei do Senado 216/2016: estabelece a reserva de 30% das vagas nas empresas, com mais de 50 funcionários, para mulheres;
Projeto de Lei do Senado 106/2018: discorre sobre medidas para incentivar o empreendedorismo feminino, por meio da destinação de 10% dos recursos do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para essa finalidade. Instituições e agências públicas de crédito e fomento também devem, segundo o projeto, facilitar o acesso à linhas de crédito, educação financeira e sistemas de garantias;
Projeto de Lei 1.950/2019: dispõe sobre a alteração da Lei Maria da Penha, com o intuito de proibir a nomeação de agressores para cargo ou emprego público, enquanto durar o cumprimento da pena.
De acordo com Nana Lima, as políticas são importantes, mas sozinhas são insuficientes. “Essas políticas são super necessárias porque é uma formalização de algo que é importante e que deve ser feito de maneira consciente, de maneira onde todo mundo ali está ciente e aquilo pode até ser ou penalizado, no sentido de que se não for cumprido pode acontecer alguma coisa. Você pode ter, por exemplo, um programa de cotas nas empresas, mas de repente ter um super preconceito contra mulheres dentro da empresa. Ou de acharem que aquela mulher não teve mérito de chegar ali, ou que ela está ali só por causa da cota. Então você faz a vida dessa mulher muito difícil. Ou, por exemplo, você coloca o mesmo critério para homens e mulheres e daí você não entende que o cuidado dos filhos recai sobre a mulher e isso tem um impacto na carreira dela. Existe todo um trabalho de conscientização, de equidade, é mais do que colocar mulheres dentro ou colocar objetivos como 'a gente vai ter 50x50 liderança'. Mas aí é isso, você não tem licença-paternidade, a licença-paternidade é de cinco dias, e aí quando essa mulher retorna da licença-maternidade, ela é avaliada naquele semestre pela mesma régua de um cara que nunca saiu, ou de um cara que foi pai, mas que a mulher dele foi afetada, não ele. Essas políticas não podem vir sozinhas, ou sem um olhar para o contexto todo”, enfatiza.
Fato é que tanto as legislações já existentes quanto as que estão em trâmite só valem para as mulheres que trabalham com carteira assinada. Nesse contexto, milhões de trabalhadoras informais não são contempladas. Segundo Marcondes, não há uma única solução que contemple todas as mulheres. Por isso, as políticas devem levar em conta as diferentes realidades vivenciadas pelas mulheres, dentre elas, a da informalidade. “Essa mulher precisa ter uma rede. Isso envolve tanto ações de proteção ao trabalho, como ações de assistência”, expõe.
O que ainda pode ser feito?
As leis e políticas existentes foram um ponto de partida para que mulheres passassem a usufruir de direitos no mercado de trabalho. Entretanto, reparos precisam ser feitos para que elas possam abranger mais mulheres e para garantir que elas tenham os recursos necessários para participar do mercado de trabalho com condições justas.
A advogada Marcondes acredita que a proteção ao trabalho está no cerne da questão. “A nossa legislação interna ela acaba que, de certa forma, não impede a demissão sem justa causa. Ela simplesmente condiciona essa demissão a um pagamento de multa, que quando você fala na linguagem dos trabalhadores, é as verbas. Essa não proteção ao trabalho é meio que o coração de tudo, porque se eu posso ser demitido ainda que me paguem uma multa, como se fosse uma espécie de indenização por essa saída, eu estou em risco todo o tempo e isso vai acabar pautando muitas coisas”. Para ela, a demissão deveria ocorrer apenas em casos de falhas graves.
“Me parece que ter um trabalho estável com o qual a mulher possa contar é uma forma de impedir o empobrecimento. A proteção ao trabalho é uma forma de garantir não só o trabalho em si, mas que essa mulher tenha um seguro social. Ou seja, quando ela não puder pelas suas próprias energias trazer dinheiro para casa ela vai estar assegurada, ela não vai colocar sua família em risco”, considera.
Para as mulheres que já ocupam espaços formalizados no mercado de trabalho, Braga defende que “se tenha maior conscientização das dificuldades enfrentadas por elas para progredir na carreira, o que pode levar à criação de políticas afirmativas, como cotas e estruturação de planos de carreira mais inclusivos e diversos”.
Habituada a trabalhar com projetos e soluções para desigualdade de gênero e outras intersecções junto à empresas, Nana Lima conta que muitas delas não sabem exatamente qual é o seu papel nesse contexto. “Não é o setor privado fazer o papel do Estado, mas complementar, ampliar o papel do Estado”, destaca.
Isso pode ser feito de três principais formas, de acordo com a diretora da Think Eva.
“O primeiro [passo] é um trabalho forte com a liderança. Porque uma cultura organizacional de equidade vem pelo exemplo da liderança. A gente já teve clientes que a empresa tinha licença-paternidade até estendida, mas nenhum dos líderes homens tiravam. Quem é que vai ter a coragem de tirar o benefício que o próprio chefe não tira? Primeiro essa conscientização, sensibilização com a liderança de que isso é um valor para empresa, do mesmo valor que transparência, harmonia, inclusão das pessoas de verdade, não só jogar um monte de gente diversa lá dentro e achar que vai funcionar. O segundo eu acho que é entrar para essa questão das políticas. Isso está no processo formalizado? Você está falando do combate ao assédio, como você investiga uma denúncia de assédio dentro da empresa? Joga embaixo do tapete, finge que não aconteceu, ou isso não vale para alguns intocáveis na empresa? Então ter tudo isso muito claro, muito transparente, formalizado, estar no manual da empresa. E o terceiro passo é a empresa começar a mostrar esse compromisso para o mundo porque aí ela começa a pautar outras empresas, outros concorrentes, os próprios funcionários avaliam a empresa, querem continuar baseados nisso. Desde assumir compromisso público, dividir as boas práticas. Isso é muito importante, porque a partir do momento que o seu concorrente faz, se você não fizer fica ultrapassado, parece que é uma empresa que não está no mesmo século que todo mundo”
Além das iniciativas tomadas pela empresa, os próprios funcionários também podem trazer a discussão sobre gênero para o contexto empresarial. Nesses casos, Nana sugere a criação de comitês. “Comitês de diversidade, comitê de gênero, comitê de maternidade e paternidade. Porque eu acho que esses comitês podem ser quem puxa o tema lá dentro, quem conscientiza as pessoas também. Na Think Eva a gente tem uma metodologia de criação desses comitês, porque não é também para você jogar um monte de gente lá para debater e não dar nenhum foco, nenhum objetivo para eles, o grupo fica frustrado porque não vê a pauta crescendo, não vê as mudanças acontecendo. Então a gente desenvolve, capacita esses comitês, principalmente para ter outras pessoas daquele grupo de identidade lá dentro. Quem vai ser o patrocinador desse grupo dentro da empresa? Então, de repente, em um grupo de mulheres pode ser um homem que consiga levar esse tema para ambientes onde elas não chegam. E, também, dar autonomia para esses comitês. Tem que estruturar isso como qualquer outro projeto dentro da empresa”.
A advogada Ana Paula Braga também enfatiza sobre a importância de os funcionários reivindicarem seus direitos. “Há muitas leis que combatem a discriminação em razão de gênero. Nestes casos, é possível acionar a justiça para reparar violações. A depender da situação, a mulher poderá procurar o canal interno de denúncia da empresa, ou a Justiça do Trabalho. Para que os canais internos funcionem, é de suma importância que as empresas se capacitem para enfrentar as desigualdades de gênero, criando ambientes adequados e seguros para as mulheres”.
Marcondes recomenda que a busca pela justiça seja feita por meio de uma rede de apoio, como uma advogada, advogado ou até mesmo sindicatos. “Agora tem muitas advogadas feministas, que são mulheres que conseguem ouvir um relato de violência sexual ou moral e conseguem receber isso sem causar violência para a vítima. Os sindicatos, muitos, têm estrutura para receber esse tipo de denúncia e preservar tanto a privacidade, anonimato desse trabalhador, especialmente quando a situação está sendo investigada para não colocar em risco essa pessoa”.
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Como a desigualdade de gênero é estrutural, políticas que atinjam essa estrutura são fundamentais. Diante disso, a economista Teixeira aponta para a necessidade de uma inversão de valores. “O que a gente precisa é justamente mudar a lógica, colocar a vida e a sustentabilidade da vida no centro, a reprodução social no centro e não o mercado, o sistema de reprodução econômica de acumulação. Hoje tem uma relação em que a reprodução social está subordinada a essa lógica, [a gente] discute justamente o oposto, tem é que subordinar a produção econômica à reprodução social, a vida está no centro e, portanto, o que a gente vai produzir é aquilo que é essencial para a vida”, acrescenta.
Informações úteis
Abaixo, há algumas sugestões de organizações e empresas voltadas para o apoio às mulheres e combate à desigualdade de gênero e suas intersecções:
Tamo Juntas: organização social composta por mulheres que prestam assessoria gratuita à vítimas de violência ou mulheres em situações vulneráveis;
Indique uma Preta: rede de apoio que faz conexões entre mulheres negras e o mercado de trabalho;
Think Eva: consultoria para empresas que buscam implementar soluções para desigualdades de gênero;
Rede Mulher Empreendedora: instituto focado na capacitação de mulheres em situação de vulnerabilidade;
Canal de Denúncias Trabalhistas: portal do Governo Federal para realizar denúncias trabalhistas de forma on-line;
Agência Patrícia Galvão: portal do Instituto Patrícia Galvão, que desenvolve e conteúdos relacionados aos direitos das mulheres;
ONU Mulheres: entidade da Organização das Nações Unidas que apoia movimentos de mulheres e feministas, e atua em áreas como participação política, empoderamento econômico, fim da violência, governança e planejamento, segurança e normas globais.
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